– Muito prazer, eu sou a Cristina.
Achei graça no jeito que falou. Um tom bem humorado, solto e leve. Respondi sorrindo:
– Maria.
O sinal abriu e ela seguiu. Quando virou a esquina, eu pedi:
– Dá uma paradinha ali?
Ela me olhou sem disfarçar a surpresa, mas me atendeu. Expliquei:
– Tenho que pegar uma parada na casa do meu amigo.
Na mesma hora, ela perguntou:
– Que parada é essa? Não é droga?
Entendi a preocupação dela. Tranquilizei-a:
– Não. Nada disso. É uma boneca que vamos usar na performance de hoje à noite. Vai ter um luau na Praia do Forte, você podia vir...
Antes que ela me desse a resposta, abri a porta e desci. Voltei alguns minutos depois carregando Monique, uma boneca de pano muito maior do que eu. Ela sorriu, divertida.
Já saindo do carro e vindo até mim, ela perguntou:
– Quer ajuda?
Abriu a porta de trás e avaliou as várias camadas de saias de tule que a boneca vestia:
– Será que cabe?
Já sentando Monique no banco, respondi:
– Claro que sim!
Assim que voltamos a entrar no carro, percebi a música que estava tocando: Flores Astrais do Secos e Molhados. Parei para escutar e cantei junto.
Ela voltou a sorrir.
Quase esqueci para onde estava indo. Na verdade, quando vi, já tinha passado um pouquinho do ponto. Falei:
– Me deixa aqui.
Ela parou. Agradeci:
– Valeu mesmo, viu?
Beijei-a no rosto, desci, peguei Monique e, antes de me virar e me afastar, voltei a convidar:
– Não esquece: hoje, depois das dez, na Praia do Forte. Eu vou cantar, aparece lá!
Fiquei sorrindo.
– Maria... Também...
Porém, nela era perfeito.
– Maria... – Nunca havia gostado tanto de falar: – Maria...
Observei-a sumir da minha vista. Absorta na imagem, na voz calma, no jeito leve, gestos suaves e na paz que ela deixou no ar. Buzinas me invadiram o pensamento e me arrancaram daquele momentâneo lapso em meu raciocínio. Dei sinal e saí em direção ao retorno, pois
havia me afastado alguns metros do meu destino, mas meu sorriso, ainda tatuado no rosto, não permitia arrependimentos:
– Maluca...
Secos e Molhados ajudaram no meu momento psicodélico. Dirigi em direção a minha rotina cantando alto com Ney Matogrosso.
O dia no escritório passou sem grandes acontecimentos e sabia que Dona Hermínia havia providenciado tudo para o retorno de Diana e Inês. Relatórios, reuniões, correspondências e fofocas.
Contava tudo a elas, inclusive sobre minhas saídas e entradas com datas e horários.
– Boa noite, Dona Hermínia, e ótimo final de semana – falei já na porta de saída, porém a ouvi responder:
– Boa noite, doutora, e juízo.
Sabia que não fazia por mal, mas às vezes esperava que ela me tratasse como adulta, da mesma forma que esperava isso de Diana e Inês.
Entrei na garagem do prédio pensando na garota da sinaleira. No elevador, lembrei-me do cheiro. Entrei em casa sorrindo, os cabelos dela em meu rosto. Em meu quarto, abri os botões da blusa e tirei...
O toque de suas mãos em meus braços. Entrei no chuveiro, o sorriso dela ao dizer “Maria”. Quando vi meu reflexo no espelho, só conseguia me lembrar daquele olhar a centímetros do meu. Decidi arriscar.
– Um luau, faz séculos que não faço isso... Por que não?
Quando estacionei o carro próximo à praia, visualizei o grupo ao redor da fogueira. Muitas pessoas circulavam entrando e saindo da areia, outros saíam do mar, outros entravam nele. Caminhei em direção ao grupo que dançava ao redor do fogo e logo a vi.
Tenho certeza que Janis Joplin, assim como eu, ficaria extasiada se visse o quanto sua música combinava com o ritmo sensual com que ela se movia. Quem sabe sentiria a mesma vontade que eu de tocá-la, sentir sua pele, os cabelos, o corpo que balançava como se a música fosse ela. Uma sensação de melodia entrando em todos os poros do meu corpo a cada movimento dela. Piece of My Heart...
Ela abriu os olhos e sorriu. Eu também.
Palpitando, pulsando, respirando o andamento, o tom, as curvas da música. Inteiramente entregue, imersa no prazer visceral que a voz de Janis impunha.
Então, mesmo sem saber ao certo o motivo, como se precisasse, como se algo me chamasse ou alguém me tocasse, abri os olhos e a vi, parada a alguns metros, me olhando fixamente. Sorri para ela, e ela para mim – com um olhar estrelado, sem nuvens.
Caminhei na sua direção. Falei:
– Que bom te ver aqui.
Mas não fui ouvida:
– Quê?
Aproximei minha boca bem pertinho do ouvido dela e repeti:
– Que bom que você veio.
Como resposta, ela voltou a sorrir.
A música terminou, e ela aproveitou para falar:
– Vou p egar uma bebida. Quer a lguma coisa? U m vinho? Uma cerveja?
Apesar da amabilidade com que a pergunta foi feita, recusei:
– Eu não bebo.
A primeira reação foi surpresa, depois voltou a ser gentil:
– Nem um suco? Ou um refri?
Respondi sorrindo:
– Não, obrigada. Vamos começar a fazer um som agora. Você vai ficar, né?
Sem desviar os olhos dos meus, ela disse:
– Eu vim pra te ver... Cantar.
Eu ri, meio sem saber o porquê. Avisei:
– Não vai esperando muito, não sou cantora nem nada, só ensaiei algumas músicas com o Pedro...
O olhar dela desceu e permaneceu na minha boca durante um bom tempo. Pairou entre nós um silêncio, que eu quebrei:
– Ele insiste, insiste e sempre acaba me convencendo...
Recuei três passos, ainda olhando para ela. Dei de ombros:
– Fazer o quê?
E só então me virei, sabendo que o olhar dela continuava em mim.
Foi assim a noite inteira. Cada vez que eu a procurava, ela estava lá, os olhos encontrando os meus enquanto eu cantava, conversava com alguém, tocava triângulo ou pandeiro. Não se aproximou, nem eu. O contato entre nós era apenas visual e, no entanto, não me deixaria mais excitada se me acariciasse o corpo inteiro.
Não sei direito quantas horas, deliciosas e intermináveis, passaram daquele jeito. Até que eu não aguentei. Sussurrei para Pedro:
– Vou dar uma fugida.
Ele seguiu meu olhar e imediatamente entendeu:
– Vai lá.
Ela sorriu, absolutamente receptiva quando me aproximei. Como se dissesse: “estava esperando por você...”
Mas não havia necessidade de palavras. Estava claro, tínhamos nos falado com os olhos a noite inteira. Peguei-a pela mão, puxei-a, e ela veio.
O encantamento em vê-la se balançar tendo o céu estrelado como fundo e o barulho das ondas quebrando na praia fazia daquele quadro, daquele contexto, algo surreal para mim. Era como se estivesse em um mundo paralelo ao meu. Ninguém ali estava preocupado com a roupa, com a maquiagem, com a performance sedutora.
Alguns se aproximavam, diziam alguma coisa, me perguntavam se queria fumar... Nunca fui muito adepta à maconha. Apesar de na universidade conviver com isso diariamente e fumar esporadicamente, ela não fazia parte da minha vida. Não mais.
Mas, naquele momento, poderiam me oferecer o que quer que fosse, não ia me interessar. Meu olhar estava preso naquele ser. Algo nela me prendia. Não sei se era o corpo, se era a voz, o brilho, a lua que via nela... Gravitei nela a noite toda.
Ela se aproximou no momento que eu esperei que viesse. Me puxou pela mão. Não sabia em que direção iria, não me interessava mais o rumo, ela poderia me levar para onde quisesse. Assim que nos afastamos, o som ficou longe, o fogo era apenas uma vela na areia.
Ela soltou minha mão, virou-se para mim, sorriu e levantou o vestido branco até a cabeça. Tirou-o, jogou de lado...
– Vamos entrar...
Esperou. Não consegui entender o que ela queria, pois a última coisa em que eu pensei foi em entrar no mar. Dei um passo em direção a ela como se não houvesse outra possibilidade, sequer havia.
Fiquei a centímetros de seu rosto. Não a toquei, mas senti todo o seu corpo vibrar e o meu respondeu no mesmo tom.
Ela esperou. O vento trouxe seus cabelos, que roçaram em meu rosto. Aproximei meus lábios e a toquei de leve, ela retribuiu e afastou-se como se quisesse olhar o que ia beijar. Sorriu. Roçou os lábios, sem pressa, experimentando. Atingiu minha irracionalidade, o ponto em que pensar já não é mais permitido. Segurei-a pela cintura, o contato de minhas mãos na sua pele, seu corpo quase nu roçando no meu... O beijo foi o elo que faltava.
Senti-a entregue, dando-se por inteiro. E eu a queria.
Lentamente fomos descendo, já não me importava mais a areia, o mar. Segurei-a em mim, e ela abriu-se lindamente sobre minhas pernas. Ficamos por alguns momentos assim nos percebendo, conhecendo, fazendo de cada descoberta um prazer. Gemidos, sons sussurrados, respirações. Percebi que já estava sem a roupa quando a areia roçou em minhas costas. Ela arrancava minhas roupas, tirava abruptamente meu mundo... E eu deixava.
Eu queria mergulhar, flutuar, sentir, molhar meu corpo, minha pele. Ela me proporcionou isso sem que entrássemos na água, com a respiração, as carícias, os beijos. Os lábios dela me levando. As mãos desvendando e, por mais incrível que parecesse, expandindo todos os limites que eu já tinha rompido... De conexão, pulsão, entrega. Não pedia, exigia. E a minha maior necessidade era atendê-la.
Ela não hesitou, veio comigo igualmente se permitindo. Só quando a fiz deitar na areia, esboçou uma leve oposição:
– Espera...
Não parei o que estava fazendo. Continuei beijando, sugando o pescoço, ondulando meu corpo contra o dela.
– Quê?
A respiração ofegante dificultou, mas, ainda assim, ela conseguiu me responder:
– Vamos sair daqui... Continuar em outro lugar...
Sussurrei:
– Não. É agora... Aqui...
E ela apenas assentiu.
Assenti àquela imperativa sentença sem a menor resistência, pois algo ali se manifestava e o medo de perder o tempo, o momento, ela, me fez transformar areia em plumas. Levantei o corpo o suficiente para forçá-la a se virar. Ela sorriu.
– Gosta de ficar por cima? – falou enquanto o beijo permitiu.
Sorri e a virei novamente, respondendo quase sem ar:
– Quero te ver... De todas as formas...
Segurou meus braços no alto e deixou seus cabelos acariciarem meu rosto, fechei os olhos e senti seu corpo suavemente se esfregar no meu, no ritmo da música que ouvíamos ao longe. Dançava, sem pressa, sobre mim. Senti-a em toda sua nudez, pele, sexo. Não suportei a ideia de prolongar minha vontade dela, beijei-a com necessidade e segurei-a pelos pulsos, fazendo-a trocar de lugar comigo.
Ela gemeu, contorceu-se como se buscasse saída, porém mais se entregava.
Explorei-a com os lábios, com minhas mãos, com meu corpo.
A lua atingia seu esplendor sobre o mar: imperfeita, porém linda.
Assim, com a sensação de que aquele contexto se complementava, um não existia sem o outro – areia, mar, lua e ela –, deflorei aquele mundo como se disso dependesse o meu. Nossos corpos dançavam outra música, aquela que vinha do mar. Entrei, ela permitiu, abriu-se.
A possuí e me entreguei para aquela alucinante melodia. Quase perdi o ritmo dela quando senti o tremor em meu corpo. Ela segurou minha mão, permitindo meu descontrole sem perdê-la. Gozamos juntas.
Fiquei ali deitada de olhos fechados, sorrindo, sentindo, fluindo. O corpo dela largado sobre o meu. Depois de um último tremor, a respiração oscilou, descontrolada ainda, quase dentro do meu ouvido. O pulso no mesmo compasso que o meu seguia.
Inspirei, expirei, ainda no ritmo narcotizante em que tudo tinha acontecido.
Ela se moveu. Levantou o corpo devagar, me olhou e sorriu com um olhar de verão, que fez a brisa quente me arrepiar e a areia úmida amornar debaixo de mim.
Beijei-a, ela correspondeu. Fui virando o corpo, trazendo-a junto de mim. Fiquei por cima. Brinquei:
– Agora me vê assim...
Não estava satisfeita. Queria, precisava senti-la, e que ela me sentisse mais ainda. Passeei, acariciei, toquei... Com os cabelos, as mãos, os dedos, a boca, a língua.
Ela deixou, se entregou, permitiu, com um despojamento magnífico.
Deliciosamente livre, gozou pra mim.
A sensação de senti-la ali, me devorando com a língua... Quase conseguia alcançar as estrelas, com a percepção de que a Terra era pequena demais para a extensão do universo que ela me mostrava.
Senti a areia penetrar em minhas unhas quando fechei os dedos tentando suportar a explosão que senti em todo meu corpo.
Antes que eu conseguisse controlar a respiração, ela subiu se esfregando.
Me beijou, sorriu e, como sempre, imperativamente, disse:
– Vem comigo...
Levantou-se e me levou junto, caminhou em direção ao mar. A sensação de sentir a água, as ondas e o calor foi surpreendentemente confortante. Ela se virou, me puxou para junto dela.
– Adoro o mar depois do amor...
Me beijou.
Uma sensação estranha me invadiu. Havia muitas informações naquela simples frase. “Faz isso sempre. Fizemos amor, foi igual ao que ela faz com os outros ou outras.”
Não tive tempo de racionalizar mais nada, a vontade de recomeçar foi urgente quando ela se virou e ficou de costas. Sentia-a se esfregando em meu corpo e minhas mãos a exploravam sem medo, sem dúvidas, sem receios. Até que ouvimos:
– Maria... Maria...
Ao longe, mas não paramos. Ouvimos novamente, mais alto. Ela respondeu sem sair do contato:
– Já vou... – Virou-se para mim, me beijou e disse: – Tenho que ir.
E saiu da água. Acompanhei-a com olhos por alguns momentos e depois fui atrás. Coloquei a roupa, ela apenas o vestido, deixou a calcinha na minha mão. Sorri...
Quando me aproximei, ela já estava absorta no papel que tinha a desempenhar. Fiquei ali, observando de longe. Divertindo-me com a performance que apresentavam, até que uma cena me trouxe à realidade.
O rapaz que havia cantado com ela a pegou pela cintura no final do ato e beijaram-se. Um beijo pleno, repleto de cumplicidade.
Meu sorriso foi sendo substituído por nostalgia. Olhei para ela assim que se soltaram e fui saindo devagar entre as pessoas que circulavam alheias à minha súbita pressa de correr dali.
Quando a performance chegou ao final, estávamos, como sempre, com energia transbordando por todos os poros. Pedro estava ao meu lado, nos olhamos, ainda trocando. Natural passar meus braços ao redor do pescoço dele, ele me pegar pela cintura e nos beijarmos.
Quando nos separamos, olhei em volta, procurando por ela.
Localizei-a, de costas, se afastando. Teria ido atrás, mas, naquele exato momento, Kika surgiu na minha frente, me abraçou e nos beijamos também.
Voltei a buscá-la com o olhar. Passei pelas pessoas, caminhei na direção que ela havia tomado na última vez que a tinha visto, mas não consegui mais encontrá-la. Provavelmente, tinha ido embora.
Fiquei ali parada, olhando para a ausência dela, estranhando o sentimento que surgiu. Desapontamento.
Não deixei que se estabelecesse.
Virei, voltei para a festa. Comecei a dançar. Mas não esqueci inteiramente.